“Selfie de emergência”

 

Tempos difíceis. Na vida afetiva ela sofria pela traição do companheiro de quase duas décadas com aquela a quem chamava de amiga. Há algum tempo o casamento estava em crise e ela já desconfiava de possíveis traições, mas a certeza era recente. Ela não era de atribuir a responsabilidade apenas ao outro, sentia-se também culpada pelo fracasso do relacionamento, mas isso não diminuía a dor. Enfrentar a separação não estava sendo fácil. Mesmo sem filhos, as decisões despertavam mágoa e tristeza. No embate pela posse da casa em que viviam e que ela contribuíra e muito para a aquisição teve que submeter-se à continuidade da presença dele por algumas semanas, que mais lhe pareciam uma eternidade.

No trabalho, diariamente, testemunhava a perda de clientes e o desespero dos chefes buscando alternativas para cortar custos. Ela sabia que era uma questão de tempo para compor a estatística dos desempregados. Esperar pelo desligamento da empresa, a fazia antecipar a insegurança para enfrentar um mercado competitivo em busca de novo emprego, e imaginar as dificuldades para enfrentar sozinha o desafio de se manter.

Mal conseguia lembrar da sua rotina de um mês antes, de dormir tarde e acordar alegre pela manhã, preparar o café, partilhar uma conversa à mesa com o companheiro e pegar uma carona até o trabalho. Agora, na solidão do quarto de hóspedes a insônia era sua companhia. Quando finalmente conseguia pregar os olhos já era de manhã e sonâmbula levantava, arrumava-se mecanicamente e saía, apressadamente, para um rápido café na padaria da esquina. Depois, era a batalha para conseguir entrar em um ônibus, espremer-se entre pessoas desconhecidas e lutar para descer nas proximidades da estação do metrô. Chegar na empresa e viver a ansiedade diária de um possível último dia de trabalho.

Ela, um mar de calmaria tornou-se revolto com ondas que oscilavam da tristeza apática ao ódio destruidor. Ela não se reconhecia e muito menos os familiares e amigos. Um dos amigos lhe indicou uma psiquiatra que já o havia ajudado em momento difícil. Resistiu o quanto pode, mas cedeu aos argumentos de que as consultas a poderiam ajudar a descarregar sua raiva e que a receita de remédios de tarja preta poderiam ser armas fundamentais para vencer a insônia e superar a angústia. Além disso, vivia em segredo, pensamentos recorrentes que indicavam o suicídio como caminho mais fácil para fugir da angústia. Decidida a virar essa página de rejeição e tristeza e seguir com sua história marcou uma consulta com a psiquiatra. Depois de duas semanas a realidade não havia mudado, mas ela sim, sentindo-se mais forte para enfrentar as surpresas que a vida lhe reservou.

Dia de consulta, fim de expediente. Ela se dirigiu ao ponto de ônibus que a levaria ao consultório, a três quadras na mesma rua, sem atraso para a consulta. Havia, no ponto outras pessoas, pois era um horário de grande movimento. Distraída, com o pensamento voltado para a consulta, não percebeu a chegada de um homem estranho que se posicionou atrás dela, prendeu seu pescoço em uma gravata e passou a ameaça-la com uma faca. Ele gritava, pedindo o cartão de crédito e a senha, e avisava aos outros presentes que se alguém se aproximasse ele a mataria. Algumas pessoas mantiveram-se paralisadas e outras correram. Por incrível que pareça ela permaneceu calma, abriu a bolsa, mesmo sem conseguir olhar para ela, pegou o cartão de crédito e o celular. Com calma, disse ao homem que guardava a senha no celular. Ela, então, não sabe de onde veio aquela ideia, bateu uma foto dela com o ladrão enviando-a para a psiquiatra que a esperava.

A psiquiatra, explorava o celular enquanto aguardava a chegada da paciente. Mas, o que chegou foi a foto do assalto. Entrou em contato com a polícia, pediu ajuda e enviou a foto que recebera. Ela foi repassada a policiais que se encontravam próximos ao assalto. Tudo aconteceu muito rapidamente. O barulho da viatura assustou o ladrão que a largou e saiu em disparada. O assaltante foi preso e ela foi intimada a ir à delegacia para prestar depoimento.

Na viatura, ao relembrar os momentos do assalto, da faca no seu pescoço, seu corpo tremia inteiro. Questionava-se sobre as razões que levaram aquele homem a realizar um assalto. E porque ela foi a escolhida entre tantas pessoas? O que a teria levado a registrar e enviar a foto? Muitas questões sem respostas e uma única certeza, que nada é tão ruim na vida que não possa piorar.

selfie com o ladrão viralizou nas redes sociais, gerando inúmeros cumprimentos e “likes” . O inusitado registro fotográfico estava, também, em revistas e jornais impressos, com direito à entrevista. Mas, ninguém se interessou pela história que ela estava vivendo antes e que continuaria após o assalto.

Tempo estranho em que o instantâneo de uma foto torna-se notícia. O registro de um pequeno fragmento de duas vidas é capaz de  mobilizar o interesse do mundo inteiro, mas a complexidade dos dramas quotidianos vividos pelos atores continuam anônimos e ignorados.

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5 comments

  1. Consuelo Fernandez disse:

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