Um lado Ogro

No verde olhar o mesmo brilho e sedução da juventude. A face, emoldurada pelos cabelos brancos, destaca o belo sorriso. O corpo esbelto e proporcional, mantém-se como o do jovem atleta, embora o tempo lhe tenha roubado parte da agilidade. Incontáveis partidas de basquete e futebol na juventude e treinos desmedidos deixaram marcas nos quadris, que dificulta alguns movimentos.

É um homem de setenta anos, maduro e experiente. Na jornada da existência, aprendeu a controlar emoções, aprimorou a observação e desenvolveu formas de relacionamento, com conhecidos e desconhecidos, baseadas no bom humor e gentileza. Mas, nos momentos em que se sente desrespeitado, surge o seu lado ogro e ele se torna grosseiro e provocativo.

Cuida do corpo e da vida. Apesar de ter construído uma grande família com filhos, netos, e ex- mulheres, optou em viver só. Aos compromissos de trabalho diário, acrescenta a organização e o abastecimento da casa. Aos sábados, costuma visitar supermercados, ocupando, sempre as vagas especiais para idoso. Assume a idade, os direitos e mantém o humor, expondo e brincando com os limites impostos pela passagem do tempo.

Em dias em que o sol se esconde, é maior o número de pessoas que se diverte fazendo compras, embora a irritação, também parece aumentar.

Em um sábado chuvoso precisou de um bom tempo para conseguir uma vaga no estacionamento. Foram horas para  localizar os produtos desejados. Recebeu incontáveis empurrões das pessoas que circulavam pelas gôndolas, que de  olhos fixos nos produtos, consideravam os seres humanos obstáculos a serem vencidos. Finalmente, enfrentou a longa fila no caixa. Apesar do cansaço, seu bom humor continuava presente.

Enquanto acondicionava os produtos no porta-malas do automóvel, observou uma motorista que procurava, ansiosa, por uma vaga disponível. Gentilmente sorriu, e informou que estava de saída, sugerindo que ela aguardasse para usar a vaga que iria desocupar. A atenção não foi retribuída por sorriso, nem agradecimento.

Ao manobrar o automóvel ouviu o comentário da mulher para a pessoa que estava no banco do passageiro:

“Era só o que me faltava, que perda de tempo, devia ter adivinhado que o velho só podia estar ocupando uma vaga para velho. “

A grosseria  destruiu a pouca paciência que lhe restava e  seu lado ogro emergiu. Emparelhou o automóvel, abriu o vidro e sem alterar a voz disse:

“Minha cara, você está tão acabada, que sua aparência leva qualquer um imaginar que você já ultrapassou, há muito tempo, a barreira dos setenta anos… Boa tarde e boas compras…”

Ao observar, pelo retrovisor, a mulher vociferando furiosa, o ogro sorriu satisfeito.

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