Lembrar ou esquecer

As vidas deles se cruzaram em uma cidade do interior de São Paulo. Ela, adolescente, cosmopolita, amante da liberdade e da paixão. Ele, interiorano, tímido, assediado na rádio em que trabalhava, por ouvintes encantadas pela sua voz e estampa. Ele apaixonou-se por ela que se encantou pelo amor dele. Após um breve romance, a previsível separação.

A vida seguiu seu curso e novas relações surgiram na vida de ambos. Ele casou-se e cuidou, como prometeu no altar, até a morte da única mulher de sua vida. Ela viveu inúmeros e intensos amores, amargou decepções, experimentou as mais diversas relações.

Meio século depois, um novo reencontro. Ela estava vivendo a aventura de nova paixão e ele cuidando da esposa enferma. Juntos experimentaram novos e intensos momentos. Ela partiu prometendo romper com a relação que estava vivendo e voltar inteira para ele. Mas, o espírito aventureiro dela prevaleceu, e nova separação foi inevitável.

A aventura dela teve um fim e ele passou a ocupar seus pensamentos. O que antes para ela eram defeitos como “caretice”, fidelidade, dedicação, tornaram-se qualidades. Ele a amava, era centrado, e quem sabe não seria um bom companheiro nesse momento em que se sentia mais serena? Reviveu o sonho romântico de adolescente e o desejo de viver, com ele, uma vida em comum. Como a existência é repleta de desencontros, outra mulher ocupava, então, seu coração.

Mas, a vida não é uma linha reta e ele, esporadicamente, a contatava pelo celular, sem nada dizer. O contato e o silêncio dele alimentavam a esperança dela, mobilizando, intensamente, seu sonho romântico.

Nesse ano, o aniversário dela, foi comemorado com amigas e companheiras de trabalho. Mais que a passagem de um ano, era o marco para o fim de um recolhimento, que ela se impusera, para viver a dor e luto pela perda de um filho, seguida pelo difícil tratamento de uma doença. Vivia o renascimento, o início de um novo ciclo, um promissor momento de sua carreira, acompanhado de viagens e de realizações profissionais.

Plena de boas energias como saldo das comemorações, ao chegar em casa atendeu um chamado do telefone fixo. Dessa vez, o silêncio foi substituído pela voz dele. Uma galante conversa a fez viajar ao passado, sentir-se amada e desejada por ele. Ele ofereceu a ela a possibilidade de viver uma história de amor na Itália, longe de tudo e todos.

Por vários dias, esse telefonema embalou o sonho de viver um grande amor. Selecionou e enviou para ele, imagens de Verona, do balcão em que Romeu e Julieta viveram seu amor impossível. Será que nesse ato, ela já previra a impossibilidade do seu amor?

Dias depois, em novo contato, ela perguntou se ele havia gostado das fotos. Ele as elogiou, mas não identificou o local. Disse que não lembrava do telefonema, da conversa ou de projeto de viverem na Itália.

O coração dela se despedaçou, os sonhos ruíram, a rejeição invadiu sua alma. Ele pediu perdão, disse que não queria magoá-la, mas não se lembrava realmente de nada. As lembranças dele foram autodestruídas. Para ela era um passado permanente, para ele um presente ignorante.

Possivelmente a conversa foi do homem de mais de 70 anos, com a adolescente de 15. Esse homem maduro não quer, ou não pode, se lembrar, que nunca foi o seu príncipe encantado, nem sequer amado por ela. O seu coração insiste em esquecer de uma viagem para viver um grande amor, pois há grande risco de embarcar sozinho.

A mulher de 70, transformou-se em uma adolescente sonhadora e romântica. Ela quer o amor que ele lhe prometeu aos 15 anos, esse raro sentimento que é muito mais atraente do que ele. Resgatar esse amor perdido nos sonhos, tornou-se mais importante que a sua realidade.

Ele e ela são da última geração de um mundo pré-virtual, com experiências do olho no olho, da comunhão física, sem mediação de telas. Não é a novidade que determina a conduta deles, mas uma história vivida. Diferentes da geração de hoje, não foram criados para esquecer.

A realização ou não desse amor é uma incógnita. A relação se alterna entre a presença e exigências do presente e os fantasmas do passado. Na memória dos adultos de hoje estão presentes os adolescentes de ontem e seus sonhos não realizados. O mais importante é que a relação não se baseia na novidade e não necessita matar o passado para existir.

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3 comments

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