Rede social analógica?

emoticon assobiando

Milena, uma garota de doze anos, ensinava pacientemente a avó enviar mensagens pelo celular e então perguntou a ela:

“ Vó, quando você era jovem, não tinha celular? Como vocês conversavam ? E como marcavam para se encontrarem? ”

“ Pois é, por incrível que pareça, em 1960 eu tinha 15 anos, um pouco mais que você , hoje. Isso faz tempo, foi no século passado. Na época não havia telefone celular e os telefones fixos eram raros, somente algumas famílias conseguiam comprar, na minha não tinha e demorou muito a chegar. O local onde eu morava, um conjunto residencial ,as pessoas tinham um bom relacionamento, eram solidárias. As famílias que possuíam telefone recebiam recados para aquelas que não tinham. Anotavam os recados e ia alguém avisar do telefonema recebido. Também ofereciam para a gente fazer ligação da casa delas. Mas, ninguém abusava e somente se recebia ligações em situações urgentes. O telefone naquela época era um aparelho geralmente de cor preta e não se digitava os números; se discava. Havia um disco com os números de 0 a 9…

“ Como assim, disco? Muito irado isso aí…. disse Milena enquanto pesquisava na internet uma imagem de telefone dos anos sessenta”

“ Olha só vó, eram assim, os telefones?…. que sinistro! Falou para a avó, mostrando o telefone antigo na tela do seu smartphone.”

“Isso mesmo, eram assim. Observe que o aparelho era conectado a linha telefônica por um fio e para usá-lo era preciso falar bem perto da base. “

“ E quando a senhora namorava, ele ligava para a casa da vizinha, dona desse monstrengo?”

“ Não… namorado ligar e deixar recado com a vizinha, nem pensar. A vizinhança toda iria ficar sabendo… e o pai ou a mãe iriam proibir o namoro antes mesmo de começar. ”

“ Vó, vocês não tinham um grupo como a gente tem whatsapp? ”

“ A gente tinha sim grupo de amigos e amigas mais ou menos da mesma idade que cresciam juntos no mesmo lugar e que a gente chamava de turma. A turma se reunia para conversar e brincar numa praça, perto onde a gente morava. Todos iam para lá e a gente ficava conversando , olho no olho, e não digitando como vocês. E as mães e pais ficavam vigiando pelas janelas das casas.”

“ E pra ficar, namorar….como vocês faziam? quis saber, Milena”

“ Nos fins de semana eu e outros jovens da turma frequentávamos bailinhos que eram realizados ao som de vitrola tocando vinis da época…O local era um galpão e quem cuidava da vitrola e trocava os vinis era um adulto, tipo síndico…”

“Vinis?….”

“É, não havia Cds naquela época, somente os vinis, que a gente chamava de LPs (Long Plays)…. Eram tocados em vitrolas como essa que tenho ainda aqui na sala, embora ela não funcione… Veja, os LPs eram colocados aqui, havia uma agulha que fazia a leitura das músicas. As músicas tocadas nos bailes iam do rock às românticas. Eu gostava das músicas mais lentas que a gente dançava de rosto colado.”

“ Os vinis são usados hoje pelos DJs para fazer som nas baladas…irado ,né? “

“Pois é, foi em um desses bailes que seu avô me tirou para dançar uma música lenta. Ele dançava muito bem e tinha também uma bela voz e cantarolava a música que tocava no meu ouvido. Na semana seguinte, sempre que tocava essa música ele vinha me tirar para dançar e voltava a cantarolar no meu ouvido.”

“ Que romântico…quem diria que a senhora dançava e namorava….”

“ Essa música que ele dançava comigo e cantarolava passou a ser o tema do nosso romance. Nos bailes a gente não ficava o tempo todo junto e músicas românticas tocavam muito pouco. A maioria das músicas era rock, twist, que tinham coreografias ensaiadas e todo mundo podia dançar, sem precisar de um par. A gente só podia se encontrar nos finais de semana. Minha mãe era durona e durante a semana era só estudar, nada mais. De sábado e domingo ou eram os bailinhos ou a gente ficava conversando na praça.“

“Sinistro …Só podiam se ver nos fins de semana? E como conversavam nos outros dias?”.

“Pois é, seu avô ficou imaginando uma forma de entrar em contato comigo durante a semana…”

“ E como ele fez se não podia nem mandar mensagem ou telefonar? “

“ Em um final de tarde, eu estava sozinha no quarto, meus irmãos tinham saído para jogar bola. Eu tinha terminado os deveres de casa e estava escrevendo um diário, copiando a letra da música que seu avô cantava para mim e recordações do último baile. Foi então, que ouvi um assobio afinado e forte. Era a música que se tornara tema do nosso romance. Fiquei imaginando quem poderia estar assobiando ali, embaixo da minha janela. Só podia ser seu avô. Com o coração acelerado abri a janela bem devagar. Era ele… Acenei e pedi para ele que me esperasse. Minha mãe estava preparando o jantar na cozinha e a convenci que eu precisava consultar um livro que havia deixado na casa de uma amiga, minha vizinha. A mãe autorizou e eu fui correndo encontrá-lo. Nós conversamos rapidamente e ele me puxou e me deu um beijo, foi o meu primeiro beijo. Saí correndo de volta para casa.”

“ Vó… muito maneiro. Ele assobiou, você descobriu que era ele e ainda ganhou um beijo?”

“ Pois é, ele conseguiu estabelecer um código para nos comunicarmos. Ao ouvir o assobio da música tema do nosso romance eu sempre dava um jeito para escapulir e ir encontra-lo por alguns minutos. Depois combinamos outros códigos. Quando ele assobiava uma música do Elvis, ele estava me dizendo que ia jogar bola com os amigos, uma música da Rita Pavone informava que ele estava com saudades, mas estava atrasado para a escola e não podia me ver.”

“ E quando você não podia ir encontra-lo? “

“Ah, quando não conseguia escapar eu assobiava de volta e se ele ouvisse meu assobio sabia que não iria encontrá-lo …”

“Vocês eram muito espertinhos… observou Milena, rindo.”

“O assobio era muito eficiente para a nossa comunicação e os outros rapazes imitaram seu avô, começaram a assobiar para as namoradas e a construir códigos para se comunicarem”.

“ Vó, assobia um trechinho da música que ele assobiava para você ir encontrá-lo…”

A avó assobiou um trecho da música La mer. Milena e ela riram e a garota tentou imitá-la, mas não conseguiu.

“ É…não é tão fácil. Você ri da minha dificuldade para mexer os dedinhos com rapidez nas teclas do smatphone, mas em assobio eu era craque. E quando jovem melhor ainda. Sabia quem estava assobiando nas proximidades da minha janela e muitas vezes sabia até para qual das minhas amigas. O assobio era para nós uma espécie de Twitter analógico.

Twitter analógico… só você vó para ter uma ideia dessas…”

“ Um dia, lá no futuro, quem sabe, você também vai aprender com sua netinha, nova forma de comunicar-se, talvez pelos olhos, por pensamento ou por chips no corpo… sabe-se lá como. Ela vai rir ao saber que você usava os dedinhos para isso… E sabe, o mais importante é a gente poder se comunicar, expressar nossas ideias e nossos afetos. A forma pode mudar, mas o conteúdo permanece…”

“ É isso aí, vó… vamos lá… digita aí uma mensagem para mim para ver se aprendeu… e pode assobiar também, se quiser…”

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2 comments

  1. Consuelo Fernandez disse:

    Ivetinha seu conto me emocionou. Nunca precisei usar assobios… minha mãe era bem liberal… mas outros códigos estavam sempre nos rondando e nos ajudando a escapar do controle q a liberalidade não se aventurava a abandonar… éramos livres ‘pero no mucho’. Ah, meus tempos de ‘Only you’, ‘The end’, ‘Let it be’… rosto colado, mas com todo respeito… valeu, amiguinha.

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