Muitos anos de vida!

Seus olhos vidrados pareciam estar presos na direção do infinito e não havia a memória de qualquer lágrima derramada. Seu corpo franzino remetia à lembrança da fome, mais que de comida, de vida. A idade, talvez duas décadas, insistia em se esconder entre a aparência do corpo menino e a face enrugada. Todos o chamavam de Miçanga, pedra bonita, mas ordinária. Ele não se importava, achava o nome bonito, sonoro e diferente. E acreditava que um dia poderia se transformar numa verdadeira joia, cobiçada pelo brilho e valor.

Na rua aprendeu a se virar, conseguir comida, um lugar para dormir, proteção dos mais velhos. A aparência era de menino carente, que inspirava cuidados dos companheiros de rua, mais experientes do que ele. Ele não era violento, vivia sempre na paz. Cometia pequenos roubos, mas sem agressões, aproveitava da sua invisibilidade para as pessoas.

Mas, aquele era um dia diferente e ele resolveu pedir uma arma emprestada para o Pé Grande.

“ Mano, preciso de uma máquina..”

“Bródi, qualé a parada?”

“Parada? Só que não … é só pra me agaranti”

“ Vai fazer terror? “

“ Só pra garantí e me fazer…”

“ Manero… a máquina é boa, se aprontá te meto porrada…”

“ Me agaranto, mano…”

Pé Grande sentiu firmeza no garoto, mostrou como funcionava a máquina e recomendou que ele não aprontasse, pois não era fácil conseguir uma daquelas. Miçanga o acalmou, prometeu o máximo de cuidado, e a devolução da máquina na mesma noite, e se tudo desse certo dividiria com ele o que conseguisse arrecadar.

Miçanga foi para o ponto de ônibus e lá permaneceu muitas horas, observando as pessoas subirem e descerem na parada de cada um deles. Ficou imaginando aquelas pessoas como formigas, uma na frente da outra, ora entrando, ora saindo. Às vezes o coletivo chegava lotado, sem espaço nem para uma, daquelas pequenas formigas. Todos se aglomeravam na porta e no empurra- empurra, sempre uma delas se espremia e conseguia entrar no formigueiro. Sorria com a cena e continuava lá, observando o movimento.

Muitos ônibus depois, ele finalmente entrou. A escolha lhe garantiu somente pessoas sentadas nos bancos, corredor livre, e somente ele em pé, na frente de todos. Preparou-se para o espetáculo. O ônibus partiu, ele sacou a arma e falou em voz calma, mas alta o suficiente para que todos ouvissem:

_”Galera, olha pra cá… Tão vendo? Tô com a poderosa… Vou fazê um pedido e quem não obdecê leva bala….”

Apavorados, mas acostumados a não reagirem diante da violência, os passageiros  alternavam o olhar para ele e para a arma e em silêncio, aguardavam as instruções. Miçanga finalmente deixou de ser invisível, era observado por olhares aterrorizados de cada uma daquelas pessoas. Demorou um pouco para falar, aproveitando bem aquele momento.

“Faço anos hoje e quero um Parabéns pra mim, vamos lá… bem alto e com força.”

Uma senhora, cantora do coral da igreja, puxou com voz afinada o coro:

“Parabéns a você…”

Os demais passageiros, surpresos pelo estranho pedido, a acompanharam ….

…”nessa data querida….”

“Palmas, meu…palmas… Quero palmas” gritou Miçanga

E todos obedeceram. Acompanharam a música ao som das palmas.

Miçanga se deliciava com a música e as palmas, mas ao perceber que se aproximavam de um ponto, olhou para o motorista apontando a arma e falou

“ Motorista tô de olho em tu.. não para no ponto….

O motorista, pai de cinco filhos, obedeceu e não parou no ponto.

Voltou-se para os passageiros na sequência e disse:

“ Bora o pique, galera … “ E ele mesmo puxou o coro…Pro Miçanga, nada….

E os passageiros responderam: “TUDO!”

“Quero presentes. Cada um aí vai dá presente pro Miçanga. Grana não.. quero PRE SEN TE, tá ligado? Põe na mochila…”

Miçanga foi de banco em banco. Um senhor ofereceu um bilhete único e ele falou que não queria. Pediu o relógio. Para uma senhora que ia lhe dar um santinho, pediu o bolo que ela tinha na sacola. Da jovem estudante ganhou um pen drive com músicas gravadas. O garoto abriu a mochila e deu a jaqueta do colégio…a garotinha no colo da mãe deu o chocolate que comia. Celular, chaveiro, anel, e a mochila foi recebendo as doações até o último passageiro.

Próximo à porta do ônibus, gritou para o motorista parar e o orientou para seguir em frente. Antes dele descer os passageiros ouviram ele dizer:

“Valeu galera! Festa manera… ano que vem tem mais… ”.

Miçanga, guardou a arma e calmamente foi andando pela rua até chegar no seu “muquifo”. À noite devolveu a arma e disse ao Pé Grande que não tinha rolado assalto e justificou

“ Mano, hoje é meu niver e rolou festa , com presente . Tem bolo aqui pra tu. Tá aqui tua máquina, bródi, gradecido. O povo se ligou na minha com a paradona que tu me cedeu. Outro dia baixo no terror, quem sabe contigo, hoje não deu…pra não estragar o clima.

“Quem fez a festa pra tu? “ perguntou Pé Grande comendo o bolo.

“ Uns cara aí… de umas parada…sangue bom!”

Miçanga, ajeitou a mochila no ombro e como sempre, fixou o olhar no infinito enquanto Pé Grande se afastava. Teve a certeza que vivera a primeira e última comemoração do seu aniversário, lá no fundo ele sabia que não iria ter muitos anos de vida.

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