Aniversário

Nos seusANIVERSARIO 1 setenta anos a vida lhe parecia estranha, às vezes era descrente do que presenciava. Ao testemunhar alguns fatos colocava em dúvida seu juízo, como no dia que foi ao banheiro em um restaurante. Ao entrar deparou-se com um homem que se recompunha apressadamente, dirigindo-se para a porta que havia acabado de transpor. Ele quase morreu de susto quando a porta se trancou sozinha, a luz tremeu e uma estranha voz feminina falou por meio de altos falantes:

“ Senhor, por favor, lave suas mãos para liberarmos sua saída. O senhor sabia que um terço das pessoas que usam o banheiro não lavam as mãos, e que podem contaminar pessoas, objetos, alimentos? Obrigada por sua atenção e tenha um bom dia.”

O homem apressado também se assustou e imediatamente obedeceu a voz; dirigiu-se ao lavabo e lavou cuidadosamente as mãos. Imediatamente a porta se abriu e o homem, após enxugar as mãos, desapareceu. Nenhum deles dois, emitiu qualquer comentário sobre aquele estranho episódio.

Como era um homem bem informado ele sabia da campanha do governo para que as pessoas mantivessem as mãos limpas, para evitar a proliferação de algumas doenças. Não ignorava, também,  que a presença de sensores permitia identificar alguns comportamentos e em função deles era possível acionar equipamentos. Inspecionou cuidadosamente o ambiente para tentar localizar  os sensores. Talvez estivessem na descarga do banheiro, na saboneteira, no espelho, onde? Sentiu-se incomodamente vigiado e tratou de seguir cuidadosamente todo o ritual de higiene. Ao sair, a porta não foi trancada e a voz feminina não se pronunciou.

Aquele dia foi todo de comemoração pelo seu aniversário, com a família, amigos e companheiros de trabalho. Mas, o episódio do banheiro não saía da sua lembrança. À noite,  em casa, aguardava uma ligação e como o  telefone não tocou ele adormeceu.

Ao acordar no primeiro dia dos seus setenta e um anos  se surpreendeu com o relógio que havia parado de funcionar e os ponteiros marcavam meia noite. Levantou-se da cama e como todos os dias tentou abrir a janela, mas apesar do grande esforço  não conseguiu. Dirigiu-se a porta e ela estava trancada. Forçou a fechadura, mas o trinco travou. O que estaria acontecendo? Repetiu em vão as tentativas de abrir a janela e a porta. O quarto escuro foi inundado, então, por diversos pontos de luz que voavam pelo teto, cama, chão como pequenos pirilampos. Ouviu um som que lembrava a  estática de uma estação de radio fora de sintonia, mas ele tinha certeza que não havia nenhum aparelho eletrônico no quarto. Procurou acalmar-se, respirou pausadamente e fechou os olhos. Afinal, podia estar vivendo uma alucinação, produto de sua imaginação. Mesmo com os olhos fechados  o barulho da estática persistia. De repente uma estação pareceu ser sintonizada uma música inundou o ambiente. Abriu os olhos e como tudo continuava igual resolveu sentar-se e relaxar submetendo-se aquela estranha experiência. A música que ele ouvia era Roda Viva:

“Tem dias que a gente se sente
como quem partiu ou morreu,
a gente estancou de repente,
ou foi o mundo então que cresceu.
A gente quer ter voz ativa
no nosso destino mandar,
mas eis que chega a roda viva
e carrega o destino pra lá.
Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
nas voltas do meu coração.”

O som da música foi diminuindo  e uma voz feminina tornou-se audível…

“ E agora José? Como se sente aos setenta e um? O que você fez do seu tempo nessa vida?”

“ Do meu tempo? Nem sei o que é o tempo, ele respondeu.”

“ Ora, o tempo é como o vento, continuou a voz. A gente não vê, mas pode sentir… Ora ele é como uma brisa que sopra devagar, ora como uma ventania, que leva tudo que se tem, exigindo o recomeçar. Pelo que sei você, nesses anos todos, respirou doces brisas e superou furacões. Teve muitos amores e tornou felizes muitas mulheres. A uma delas você presenteou com filhos lindos e deles recebeu netos. Eles despertaram afetos que são verdadeiros presentes na vida. E você também ao distribuir ao redor seu amor, tornou filhos os seus sobrinhos que o amam como a um verdadeiro pai. E as outras incontáveis mulheres com quem se relacionou também tornaram-se gratas, assim como você, pelos bons momentos vividos”

“ E agora, o que me resta?”

“ Resta seguir em frente, como sempre. Devagar, sem pressa. É tempo de aproveitar o que construiu respeitando os caminhos seguidos por seus amados. Nem sempre a trilha será a mesma que você traçou, mas haverá, também, belas paisagens. É preciso também estar disponível para novos vínculos, para novas aventuras na vida. É tempo de curtir os prazeres que lhe restam, fechar os olhos e sentir o sabor. É o tempo que ao vinho pode oferecer maior doçura, mas também torná-lo azedo, em condições inadequadas.”

“ O que você quer dizer com isso?”

“Estará perdendo o precioso tempo que lhe resta se, como defesa, destilar sua raiva, usar palavras duras, não confiar no outro e esconder o seu lado mais doce.“

“ Não sou assim…protestou ele.”

“ Eu sei que não, mas às vezes se mostra assim… Mas, saiba que tudo que falei aqui é pura bobagem. Afinal você acreditou que aquela voz no banheiro iria mudar o hábito de lavar as mãos daquele infeliz ? Mudou naquela situação, mas depois, quem sabe? Ninguém muda ninguém, a gente é o que é.”

O celular tocou interrompendo a conversa com um som estridente. Ele acordou meio sonâmbulo e atendeu. Era ela, a mulher Big Ben, a ligação que ele esperava, pontualmente às 21 horas.

“ Meu querido, parabéns pelo seu aniversário. Desejo a você muita asa para voar, com liberdade,  pelo mundo. Quando quiser pousar para admirar as flores e sentir seu perfume aqui encontrarás um jardim de amor (quase) perfeito e uma jardineira a sua espera ”

Aquela  voz parecia muito com a que ouvira no seu sonho. Pensou em fazer uma piada com aquela frase melosa, quase ridícula que ela lhe dissera, mas apenas sorriu e cantarolou baixinho:  “O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração.”

 

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One comment

  1. Consuelo Fernandez disse:

    Lindo conto Ivete. Me vi restrata nele por várias vezes. Adorei.

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